Trata-se de um projeto que envolve “arquitetura não solicitada” motivado pela busca da pratica profissional de efetiva contribuição, por um compromisso ético de difusão do campo da arquitetura e do urbanismo e pelo enfrentamento, com uma perspectiva diferenciada, positiva e transversal multidisciplinar, dos prementes desafios que hoje se apresentam na escala local - global.
O Doce_Ssa nasceu no contexto da Virada Sustentável 2018 Salvador, maior Festival de Desenvolvimento Sustentável, Educação e Cultura da América Latina, lastreado pelos 17 ODS ONU, como ação selecionada que envolveu intenso planejamento, projeto e construção non-profit, mobilizou diversos voluntários e especialistas, evoluindo para o interesse da agenda de Sustentabilidade e Inovação da Municipalidade.
Em consonância com os objetivos e levados a investigação, o confronto com o Projeto Honey Factory - projeto italiano de biomonitoramento urbano e didática ambiental, baseado na Apicultura (criação de abelhas com ferrão) – foi que revelou a Meliponicultura, no lugar da Apicultura, como protagonista na realidade brasileira em todo seu potencial de promoção de desenvolvimento sustentável. No âmbito arquitetônico, a falta de conhecimento acerca das abelhas nos fez compreender só após algum tempo que a configuração daquele objeto, com acesso das abelhas a 4,5 de altura do solo, como medida de segurança ao público, não se justificava no nosso território. Por serem espécies com o ferrão atrofiado, incapazes de ferroar o ser humano, nossas abelhas nativas podem estar presentes na zona urbana, em espaços públicos. Este aspecto influenciaria definitivamente a arquitetura proposta.
A Meliponicultura, criação racional de abelhas nativas “sem ferrão” (ou meliponíneos), por sua vez, é uma atividade em expansão, de utilidade pública e de essencial interesse para o meio ambiente e para agricultura familiar e empresarial.
Na Bahia, como panorama favorável, o intenso ativismo de diversos meliponicultores, chefs da gastronomia, pesquisadores, instituições governamentais, associações e grupos organizados, resultou na recente regularização da atividade no Estado (lei 13.905/2018), permitindo a implantação de Meliponários, visando atender finalidades socioculturais, pesquisa científica, fomento, educação ambiental, conservação, exposição, reprodução e comercialização de seus produtos e subprodutos, demonstrando assim a potencial multiplicidade programática para arquitetura.
Mais do que delicioso mel, as abelhas prestam um significativo serviço ambiental com a polinização. Sem esse processo muitas plantas não produziriam sementes e frutos e não se reproduziriam para garantir o crescimento e a sobrevivência da vegetação nativa ou a produção de alimentos (80% dos cultivos polinizados dependem delas).
Mais de 72% da população brasileira atualmente vivem sob os domínios da Mata Atlântica – Salvador possui a totalidade do seu território nesse importante bioma, com seus ecossistemas associados - sendo que cerca de 87% de sua cobertura foi reduzida com recorrentes supressões vegetais. A nossa qualidade de vida depende, em grande parte, da manutenção e recuperação dos remanescentes deste bioma, que mantêm os mananciais que abastecem as cidades, ajudam na regulação do clima, da temperatura do solo e protegem encostas e morros.
A acelerada expansão urbana vem reduzindo o habitat natural e consumando o holocausto de colônias de ABSF, aumentando o risco de quebra de safra de alimentos por falta de polinizadores no mundo, como já vem ocorrendo na Europa, Ásia, EUA e no Brasil, em virtude do grande consumo de agrotóxicos.
ARQUITETURA PARA TODOS
A implantação de Meliponários, que possibilita multiplicação de colônias de ABSF, pretende reverter esse quadro numa estratégia de resiliência climática de comunidades para capital baiana. A proposta arquitetônica contempla a rede a partir das “micro-arquiteturas”, da multiplicação dessas compondo espaços articulados com programas locais: parques urbanos, hortas urbanas, escolas, terreiros de matriz africana. O “pequeno pavilhão” temporário, por sua vez, palco do evento da Virada Sustentável, intencionava uma amostra da macro arquitetura do edifício-sede gestor da rede. Propositalmente locado num dos principais parques urbanos da cidade, reforçava a mensagem do papel do espaço público como necessário “bolsão de ar” para urbanidade, entre dois bairros com forte e brusco contraste na morfologia urbana, Nordeste de Amaralina e Itaigara – o apelo ousado para organização do evento que inclua a arquitetura de pavilhões de forma oficial na agenda, e a proposição efetiva da locação ali do equipamento sede, articulado com o programa do novo centro de inovação recém inaugurado pela prefeitura.
Numa provocativa inversão de escalas, da relação cidade – arquitetura – objeto é então proposto o Doce_ssa, colocando a arquitetura a serviço da Meliponicultura, evidenciando abordagens que se entrelaçam: abelhas nativas sem ferrão, biodiversidade, patrimônio genético e cultural, empreendedorismo, economia familiar, educação ambiental, qualidade de alimento e de vida, espaços verdes, cidades habitáveis resilientes.
AS MICRO-ARQUITETURAS E BIODIVERSIDADE
OS MELIPONÁRIOS são os locais onde são instaladas as colmeias das abelhas. Essas, em geral, também chamadas de caixas racionais, são construídas em madeira e reproduzem, baseadas em pesquisas científicas, as características fisiológicas que as colônias encontram na natureza (cavidades de troncos de árvores). Trata-se do abrigo de uma criteriosa construção da natureza realizada pelas abelhas, em matérias base, cera, barro e resina vegetal: a arquitetura dos ninhos. Atualmente existem uma infinidade de modelos de caixas para ABSF que variam de acordo com a biologia da espécie manejada disponível (58 espécies reconhecidas), com a região do país e, também, com os objetivos de criação.
Os objetivos de criação aqui propostos voltam-se a educação ambiental e a polinização do bioma Mata Atlântica, das hortas urbanas e seu entorno. Propõe também compor o plano de manejo municipal da espécie Melipona scutellaris (Uruçu Nordestina) em risco de extinção, até então inexistente. Adotou-se assim a caixa modelo vertical Fernando Oliveira / INPA, aliando os objetivos do projeto àqueles disponíveis, que por sua vez se alinham com os critérios sustentáveis da prática da meliponicultura.
O trabalho piloto de design se desenvolveu vislumbrando a articulação com as ações da Municipalidade no seu Programa Salvador Capital da Mata Atlântica, com o plantio de espécies nativas em toda cidade, e a consolidação da Rede de Hortas Urbanas comunitárias e escolares.
Definiu-se duas tipologias, que se conformam aos programas e objetivos de criação propostos, sempre buscando o conforto animal e as adaptações necessárias para adoção em meio urbano. Neste aspecto vale salientar a recomendação para localização dos meliponários nas proximidades de oferta de flora (pasto melípona), conforme raio de voo de cada espécie, e distante de fontes poluentes (fábricas, abrigos de lixo, etc.)
A ‘COLMEIA DOCE_SSA 01‘, se constituiu basicamente do aperfeiçoamento da colmeia com suporte individual adotada em meliponários com método artesanal tradicional de criação de ABSF. Sugerida a implantação em espaços públicos, com caráter educativo – lúdico, demandou a criação de um dispositivo de segurança contra furtos, frente ao valor agregado da colônia de abelhas. Pensados na manutenibilidade, a adoção de alguns materiais não naturais como o metal, também intencionam esteticamente o contraste da manufatura humana, com um sugestivo equilíbrio possível com a natureza. Em detalhe, a pintura corporal indígena aplicada ao suporte de madeira renovável, propõe o resgate da herança cultural indígena na lida com as abelhas.
A arquitetura da ‘COLMEIA DOCE_SSA 02‘, por sua vez, foi pensada para dinâmica de implantação em hortas urbanas (espaços com vigilância permanente), como centros polinizadores. Seguem assim o nível de progressão da participação da comunidade, a disponibilidade orçamentária, e o próprio crescimento natural induzido das colônias no cronograma pretendido de manejo. Dentre as demais características condicionantes da tipologia: estruturas flexíveis possibilitando diversos arranjos na variação da configuração de espaços e disponibilidade de infraestrutura (água, energia, áreas de apoio etc.); suportes para se atingir 100 caixas/colônias/horta; estruturas que possibilitem outras apropriações das comunidades das hortas e das escolas (estação de serviços do cultivo, a sala de aula ao ar livre), conferindo caráter de pertencimento local além do funcional das ABSF; estruturas modulares possibilitando velocidade de execução e sistema de montagem adaptativos; estruturas compactas (Largura=65cm), podendo ocupar a faixa correspondente a 1 canteiro da horta (em geral L=60 a 100cm); previsão de barreira para predadores naturais (formigas, etc.); possibilidade de receber qualquer caixa racional, inclusive toras de madeira como ninhos para abelhas solitárias (sem algumas dessas jamais comeríamos alguns frutos, como o maracujá).
Da relação metafórica de intercâmbio entre a flora e a fauna (ABSF) e a partir das demandas funcionais– programáticas expostas, é concebida a tipologia 02, com três variantes: modulo único (260x200cm), com capacidade para 12 colônias; modulo duplo, com capacidade para 60 colônias; modulo duplo, com instalações de apoio e serviço, capacidade para 29 colônias.
A construção desse projeto confere uma nova perspectiva de atuação profissional do arquiteto. O Doce_SSA propõe assim conectar a biodiversidade ao espaço urbano, entre o natural, o cultivado e o construído.
FICHA TÉCNICA - PROJETO DOCE_SSA
- Local: Salvador, Bahia, Brasil, Planeta Terra
- Ano: 2018 / 2019
- Idealização e coordenação: George Almeida / Studio 360arquitetura
- Equipe: Abner Batista, Ludmila Gomes, Matheus Rocha, Marina Novais, Robson Racaes (Racaes Consultoria Estrutural)
- Multidisciplinaridade: Carola Lima (Bióloga), Pedro Viana (Meliponicultor)
- Laboratório de Bionomia Biogeografia e Sistemática de Insetos – BIOSIS / IBIO /UFBA
- Texto enviado pela equipe de projeto